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20.01 Estrutura do verso

Ritmo e verso


  • 1. Examinemos estes versos do poeta Cruz e Sousa:
  • Vai, Peregrino do caminho santo,
  • Faz da tu'alma lâmpada do cego,
  • Iluminando, pego sobre pego,
  • As inviveis amplidões do Pranto.

Verificamos que as sílabas tônicas, marcadas em itálico, se repetem depois de uma, duas ou três sílabas átonas. Esta sucessão de sílabas fortes e fracas, com intervalos regulares, ou não muito espaçados (para que a reiteração possa ser esperada e sentida pelo nosso ouvido), é uma fonte do prazer a que chamamos ritmo.

  • 2. A contiguidade de sílabas tônicas prejudica o ritmo e, consequentemente, desagrada ao ouvido. Por isso, a sílaba anterior à última tônica é necessariamente átona. Tão forte é esta exigência rítmica que, mesmo sendo tônica no vocábulo isolado, ela se atonifica pela posição. Por exemplo, nestes dissílabos de Casimiro de Abreu,

  • Tu ontem
  • Na dança,
  • Que cansa,
  • Voavas...

o pronome tu, monossílabo tônico, sofre uma deflexão de pronúncia, no primeiro verso, por ser obrigatoriamente acentuado, como sílaba final do verso, o de ontem, que lhe está contíguo.


3.O ritmo é o elemento essencial do verso, pois este se caracteriza, em última análise, por ser o período rítmico que se agrupa em séries numa composição poética. Quando tais períodos rítmicos apresentam o mesmo número de sílabas em todo o poema, a versificação diz-se regular. Se não há igualdade silábica entre eles, a versificação é irregular ou livre.


Os limites do verso

  • 1. A forma do verso é determinada pela combinação das sílabas, acentos e pausas, contando-se as sílabas até a última acentuada. Assim, têm igualmente dez sílabas métricas os seguintes versos de Augusto dos Anjos:

  • A es ca la dos la ti dos an ces trais
    No tem po de meu Pai, sob es tes ga lhos
    Sob a for ma de ni mas ca mân dulas
    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

  • porque não se leva em conta a átona final da palavra galhos, tampouco as duas finais da palavra camândulas.

  • 2. O número de unidades silábicas que se contêm num verso, desde o seu início até a última sílaba tônica, é indicado por compostos gregos em que entra a forma do numeral seguida do elemento -sílabo: monossílabo, dissílabo, trissílabo, tetrassílabo, pentassílabo, hexassílabo, heptassílabo, octossílabo, eneassílabo, decassílabo, hendecassílabo e dodecassílabo.

Vejamos agora como se contam estas unidades silábicas.

As ligações rítmicas

A melodia do verso exige que as palavras venham ligadas umas às outras mais estreitamente do que na prosa.

Sinalefa, elisão e crase

Comparemos estes versos de Olavo Bilac, todos com dez sílabas métricas:

Che guei. Che gas te. Vi nhas fa ti ga (da)
E tris te, e tris te e fa ti ga do eu vi (nha.)
Ti nhas a al ma de so nhos po vo a (da,)
E a al ma de so nhos po vo a da eu ti (nha...)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10


Verificamos que no primeiro haverá sempre, de qualquer forma que o leiamos, dez sílabas até a última tônica. Nele a fronteira das sílabas é coincidente, seja numa leitura pausada ou acelerada, seja na prosa ou no verso, seja, enfim, numa emissão isolada das palavras, se abandonarmos a última sílaba átona.

Já não sucede o mesmo com os três outros versos, que só atingem aquela medida pela leitura numa só sílaba da vogal final de uma palavra com a vogal inicial da palavra seguinte. Assim:

a) no segundo verso, temos de juntar numa só emissão de voz o e final de triste e a vogal da conjunção aditiva (duas vezes), bem como o o de fatigado e o ditongo do pronome eu;


b) no terceiro verso, ligamos o artigo a à vogal inicial de alma;


c) no quarto, finalmente, fundimos numa só sílaba as vogais da conjunção e, do artigo a, e a inicial do substantivo alma; e, também, a vogal final do adjetivo povoada e o ditongo constituído pelo pronome eu.


Na leitura destes versos, sentimos que há três soluções para obtermos a contração numa sílaba de duas ou mais vogais em contato:

  • 1ª) A primeira vogal pode perder a sua autonomia silábica e tornar-se uma semivogal, que passa a formar ditongo com a vogal seguinte. é o que se observa, por exemplo, na pronúncia:
  • fa / ti / ga / dwew / [= fatigado eu]

  • Dizemos que neste caso há sinalefa.

  • 2ª) A primeira vogal pode desaparecer na pronúncia diante de uma vogal de natureza diversa. Por exemplo, na pronúncia:
  • fa / ti / ga / dew / [= fatigada eu]

  • A este fenômeno chamamos elisão.

  • 3ª) A primeira vogal pode ser igual à seguinte e com ela fundir-se numa só. é o que se dá, por exemplo, com a emissão:
  • Ti / nhas / al / ma / [= Tinhas a alma]

Neste caso, verifica-se o que denominamos crase.

Ectlipse

Examinamos até aqui encontros vocálicos intervocabulares em que a primeira vogal é oral. Mas pode ocorrer que ela seja nasal, e, neste caso, a regra é manter-se a autonomia silábica, isto é, o hiato das vogais em contato.

Há, porém, certos encontros de vogal nasal com vogal (oral ou nasal) que na própria língua corrente costumam ser resolvidos em ditongo, ou mesmo em crase. É o que se observa, por exemplo, em ligações como co'a, c'a, c'o (= com a, com o), que a própria ortografia oficial admite que se escreva sem apóstrofo, com os elementos totalmente aglutinados (coa, ca, co). A esta fusão vocálica, facilitada pela perda da ressonância nasal da primeira vogal, dá-se o nome de ectlipse.

De acordo com as necessidades métricas, os nossos poetas têm-se servido das duas soluções que a língua lhes oferece no particular: a conservação das duas vogais em sílabas distintas, ou a fusão delas numa só sílaba. Leiam-se, a propósito, estes versos de Casimiro de Abreu, todos de sete sílabas métricas:

  • Tudo muda com os anos:
  • A dor — em doce saudade,
  • Na velhice — a mocidade,
  • A crença — nos desenganos!

No primeiro, temos o encontro com os pronunciado em duas sílabas. Já nos seguintes versos do mesmo poeta, também de sete sílabas, por duas vezes dá-se a ectlipse no encontro com as (co'as):

  • — Jesus! Como eras bonita,
  • Co'as tranças presas na fita,
  • Co'as flores no samburá!

Observações:

  • 1ª) Como nos mostram os exemplos citados, para que um encontro vocálico intervocabular possa ser pronunciado em uma só sílaba, é necessário que a sua primeira vogal seja átona, ou capaz de atonificar-se pela próclise. Sendo tônica, a solução normal é o hiato com a vogal seguinte, seja esta tônica ou átona.

  • 2ª) Os termos sinalefa e elisão costumam ser empregados como sinônimos. É, porém, de toda a conveniência aplicá-los distintamente, como fazem os modernos estudiosos de versificação românica.

O hiato intervocabular

Desde os tempos antigos, os poetas têm procurado evitar o hiato de vogais pertencentes a palavras distintas, encontro que os compêndios de métrica, invariavelmente, consideram um defeito grave no verso, por torná-lo frouxo. Cabe, no en-tanto, ponderar que nesta, como em outras questões, não se devem estabelecer normas de rigor absoluto, pois nem sempre o poeta quererá ceder à forma o pensamento e, em certos casos, o hiato intervocabular pode ser não um defeito, mas um recurso de alta expressividade para realçar determinada palavra, ou para nos obrigar a emitir o verso num tom pausado. Em alguns poetas torna-se até condenável o excessivo escrúpulo em evitá-lo. É o que se observa, por exemplo, na obra de Hermes Fontes, de méritos inegáveis, mas por vezes artificial. Citemos, a propósito, este seu dodecassílabo:


em que, contra a realidade idiomática, temos de emitir numa só sílaba as vogais marcadas com itálico (-a é ân-).

Ora, quando num encontro concorrem duas vogais tônicas, elas não podem fundir-se numa sílaba nem no verso, nem na prosa. Mesmo se houver um enfraquecimento relativo da primeira vogal, como notamos no dissílabo de Casimiro de Abreu:

Tu / on / (tem),

tal enfraquecimento não evitará, normalmente, a separação silábica das vogais.

Excluindo-se, porém, este caso em que o hiato é inevitável, e outros excepcionais, em que ele vale como recurso de estilo, pode-se afirmar que, desde o século XVI, os poetas da língua manifestaram uma decidida e definitiva opção por solucionarem com sinalefa ou elisão os encontros vocálicos intervocabulares, a fim de conseguir para os seus versos uma estrutura mais contínua, mais fluente, mais plástica.

A medida das palavras

1. Relativamente à contagem das sílabas no interior das palavras, temos de considerar, em primeiro plano, os fatores de ordem gramatical.


Como nos ensina a gramática, também no verso os ditongos e os tritongos se contam em uma sílaba e as vogais em hiato, em sílabas diferentes. Assim, nestes hendecassílabos de Castro Alves:

A tar de mor ri a! dos ra mos, das las (cas,)
Das pe dras, do quen, das he ras, dos car (dos,)
As tre vas ras tei ras com o ven tre por ter (ra)
Sa í am quais ne gros, cru éis le o par (dos.)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

a palavra rasteiras conta-se em três sílabas, e quais, em uma. Esse número de sílabas elas o terão igualmente na prosa, ou, mesmo, se tomadas isoladamente. O ditongo [ey], que se contém na primeira, e o tritongo [way], que apresenta a segunda, são, pois, as pronúncias normais desses encontros vocálicos em todas as formas da língua.


Por outro lado, as palavras morria e saíam, em que há os hiatos /i-a/ e /a-í-a/, serão sempre emitidas em três sílabas, não importando o tipo de enunciado no qual apareçam.

2. Sinérese. Nas palavras que acabamos de examinar há perfeita coincidência da sílaba gramatical com a sílaba métrica. Mas esta concordância pode não existir, porque, em certas condições, o verso permite a criação de novos ditongos, ou melhor, admite que se ditonguem vogais que, na pronúncia normal, formam hiato. Esta passagem de um hiato a ditongo, por exigência métrica, chama-se sinérese.



Por exemplo, a palavra magoado é tetrassílaba na língua corrente, já que apresenta o encontro -oá-, pronunciado de regra com as vogais em hiato. Também no verso costuma ser assim emitida, como nos mostra este heptassílabo de Augusto Gil:

Tão ma go a do, tão lin (do)
1 2 3 4 5 6 7


Não é raro, porém, o emprego destas palavras no verso como trissílabos, com a transformação do hiato /o-a/ (= /ua/) no ditongo [wa]. Compare-se ao que citamos anteriormente este heptassílabo do mesmo autor:

Mas o seu o lhar ma goa (do)
1 2 3 4 5 6 7


3. Diérese. Menos frequente do que a sinérese é o fenômeno inverso, ou seja, a transformação de um ditongo normal em hiato. A esse alongamento silábico dá-se o nome de diérese.

Exemplifiquemos:

Na língua viva de nossos dias a palavra saudade é um trissílabo (sau-da-de), e como tal se emprega comumente quer na versificação erudita, quer na versificação popular. Mas, vez por outra, ainda aparece usada no verso com a antiga pronúncia tetrassilábica (sa-u-da-de). Assim, nesta quadrinha:

A ausência tem uma filha,
Que se chama saudade:
Eu sustento mãe e filha,
Bem contra minha vontade.

Crase, aférese, síncope e apócope

Além dos que estudamos, outros processos têm sido utilizados por nossos poetas para reduzir ou ampliar o número de sílabas de uma palavra, segundo as necessidades métricas. Entre os processos de redução vocabular, devem ser conhecidos:

  • 1º) A crase, ou seja, a fusão de duas vogais idênticas numa só, o que ocorre, por exemplo, com os dois -aa- contíguos de Saara neste decassílabo de Castro Alves:

  • Quan do eu pas so no Saa ra a mor ta lha (da)
    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

  • 2º) A aférese, ou seja, a supressão de sons no início da palavra. é o caso do emprego da forma 'stamos por estamos neste decassílabo de Castro Alves:

  • 'Sta mos em ple no mar... Do fir ma men (to)
    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

  • 3º) A síncope, ou seja, a supressão de sons no meio da palavra, o que sucede na pronúncia Esp'ranças por Esperanças neste decassílabo de Casimiro de Abreu:
  • Es p'ran ças al tas... Ei- las tão ra (sas)
    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

  • 4º) A apócope, ou seja, a supressão de sons no fim da palavra. Sirva de exemplo o emprego de mármor pela forma mármore neste decassílabo de Castro Alves:
  • Ar tis ta cor ta o már mor de Car ra (ra)
    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

A cesura e a pausa final

  • 1. O período rítmico formado pelo verso termina sempre numa pausa, que o delimita. Esta pausa pode consistir numa interrupção mais ou menos longa da cadeia falada, conforme assinale o final de verso, de estrofe, ou do próprio poema, caso em que é absoluta. Pode ser ela brevíssima, ou, mesmo, não passar de um simples abaixamento da voz nos pontos de separação dos versos, mas não pode faltar. Omiti-la é retirar o sinal determinador da extensão e unidade dos períodos rítmicos em que se estrutura o poema.

  • 2. A cesura é um descanso da voz no interior do verso. Ocorre principalmente nos versos longos, que ficam por ela divididos em grupos fônicos.

  • 3. Comparem-se estes exemplos de Olavo Bilac:
  • Cheguei. // Chegaste. // Vinhas fatigada...
  • E um dia assim! // de um sol assim! // E assim a esfera...
  • Despencando os rosais, // sacudindo o arvoredo...

Quando o verso apresenta apenas uma cesura, os dois grupos fônicos por ela formados recebem o nome de hemistíquios (= metades do verso), embora nem sempre contenham o mesmo número de sílabas.

Acentue-se, ainda, que, ao contrário da pausa final do verso, a cesura que recaia entre duas vogais não impede que elas se ditonguem ou, até, se fundam pela crase.

Cavalgamento (enjambement)

1. Dissemos que o verso finaliza sempre com uma pausa ou com uma deflexão da voz que, ainda que breve, deve ser suficientemente percebida como o sinal característico do término de um período rítmico.


Geralmente a pausa final do verso coincide com uma pausa existente, ou possível, na estrutura sintática. É o que observamos nestes decassílabos do soneto Nel mezzo del cammin..., de Olavo Bilac:

  • Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada /
  • E triste, e triste e fatigado eu vinha. /
  • Tinhas a alma de sonhos povoada, /
  • E a alma de sonhos povoada eu tinha... /

2. Não raro, no entanto, os poetas servem-se de um recurso estilístico, de alto efeito quando usado comedidamente, que consiste em terminar o verso em discordância flagrante com a sintaxe, pela separação de palavras estreitamente unidas num grupo fônico. As palavras deslocadas para o verso seguinte adquirem, com isso, um realce extraordinário, como vemos neste passo do mesmo soneto de Bilac:

  • E paramos de súbito na estrada
  • Da vida: longos anos, presa à minha
  • A tua mão, a vista deslumbrada
  • Tive da luz que teu olhar continha.

A esta bipartição do grupo fônico pela suspensão inesperada da voz em seu interior e pelo relevo do segundo elemento, ansiosamente esperado pelo ouvinte, dá-se o nome de cavalgamento ou, na designação francesa, enjambement.